sexta-feira, 25 de novembro de 2016

A MULHER DE 60




ENTÃO CHEGAMOS LÁ 







De repente, quando ela resolveu falar do amor, era como se pertencesse a um outro mundo, insuportavelmente vazio, regido por critérios pelos quais ela só podia sentir desprezo.
Ainda era uma mulher, seu desejo ainda era latente, sua alma também pulsava como quando tinha vinte anos, ou pulsava muito mais, pois tinha consciência de quanto agora seria mais difícil, seus amores, suas fantasias... 
Aquele corpo repleto de marcas do tempo, não havia envelhecido nem um único dia no prazer.
Das inúmeras experiências que viveu, conseguia agora traduzir em apenas uma palavra fortuita e sem o merecido cuidado: velhice. Mas foram essas experiências mudas, algumas ocultas, outras imperceptíveis, que deram à sua vida forma, colorido e melodia.
Os pensamentos se deslizam para fora de sua vivência e o que resta neste papel é um sem número de contradições, de preconceitos. Ela chega a acreditar que isso é um defeito, algo que devia ser esquecido: o desejo do prazer.
Talvez o tamanho deste desconcerto entre o desejo, a fantasia, o amor e preconceito (muitas vezes pessoal) é o tamanho, a maneira exata para compreender essa experiência do corpo e da alma, ao mesmo tempo conhecida e enigmática.
Então se é verdade tudo que acontece dentro dela e que só pode viver uma pequena parte, a dúvida permanece: O que fazer com o resto? 
Tem a sensação de que pela primeira vez está atenta e lúcida com relação a ela mesma, ao seu mundo mágico e ainda juvenil no seu interior.
Sentia-se como se houvesse embarcado em um avião para, poucas horas depois, aterrissar em um mundo externo completamente diferente, sem ter tido tempo de absorver as imagens que passaram durante o longo caminho.
É uma mulher, uma mulher que não suporta pensar que todas aquelas marcas, as das dores, as dos amores, as mais profundas, assim como as mais superficiais, tenham sido em vão. A pele do seu rosto, seus seios, os cabelos brancos que agora além da cabeça, nascem no sexo, a barriga um pouco mais volumosa...
As imagens nas vitrines desse mundo moderno, são grandes e nítidas, mas do outro lado do vidro, ela não tem como não sentir orgulho de ser quem é, de ser como é.
Os homens, não a olham mais, os vendedores a chamam de senhora, as crianças de tia ou vovó.
A família espera o bolo de banana, que era receita de sua não se sabe qual tataravó... Mas ela sabe, tem certeza, que seu lugar não é o forno, que seu desejo não é a gritaria das crianças.
Seu desejo é sexo, amor, toque, um longo beijo na boca, como se tivesse sido o primeiro, um abraço cheio do tesão igual àquele quando sua carne era dura, mas seu universo interno quase nada sabia do amor.
Hoje ela sabe tudo, dar e receber afeto, hoje não existe mais pudor, hoje não é mais o sexo pelo sexo, hoje é o sexo que foi para sempre, aquele que esteve guardado por tanto tempo nas cicatrizes de sua pele.
Hoje ela sabe ser completa, sente o sangue de seu homem, aquele que não está mais alí, correr nas suas veias, mesmo quando está acendendo a luz do forno para determinar o ponto do bolo, da tataravó, da avó, que tem certeza, também desejavam determinar, ao invés do calor do forno, o calor do sexo de seu homem.
Agora ela sabe mais que tudo, que não tem a menor ideia de como será essa coisa do desejo de viver um amor novo, em uma época que não conhece mais. Só sabe que não cabe nenhum adiamento. seu tempo está bem mais próximo do fim, do que do início, e pode ser que não reste muito.
Agora já não é entre milhões de pedras preciosas que abriria a porta do palácio de seus sonhos, mas sabia que podia ser a libertação de uma imagem de si mesma, aquela que na vitrine mostrava seus limites.
Será que há um mistério sob a superfície da vida humana? Ou as pessoas são exatamente como se revelam através de suas ações.
Está resolvida, tudo completamente claro, não precisa de bagagem, não precisa de nada que não seja apenas ela mesma, nem dinheiro, nem realidade, nem família, nem problemas, nem soluções.
O circo chegou à cidade, pobre, pequeno, o fotógrafo tirou uma foto dela, mostrou em um monóculo, sorriu e gostou da imagem que viu. Foi aí que ela decidiu, de uma vez por todas, e para sempre, fugir com o circo, exatamente como sonhou na infância: Pois o palhaço quem é? É ladrão de mulher...

Madu Dumont


2 comentários:

  1. Li esta crônica como se estivesse degustando um vinho. Representa a realidade de um mulher acima de 60 anos que no olhar dos filhos só servem para serem mães e avós e que na verdade tem muito amor para dar a um companheiro.
    Esta parte que me atrevo a transcrever abaixo é a realidade que infelizmente muitas mulheres não desabrocham quanto a isto.

    Seu desejo é sexo, amor, toque, um longo beijo na boca, como se tivesse sido o primeiro, um abraço cheio do tesão igual àquele quando sua carne era dura, mas seu universo interno quase nada sabia do amor.
    Hoje ela sabe tudo, dar e receber afeto, hoje não existe mais pudor, hoje não é mais o sexo pelo sexo, hoje é o sexo que foi para sempre, aquele que esteve guardado por tanto tempo nas cicatrizes de sua pele.

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  2. Obrigada Guilherme! Pelo comentário e por participar. Siga o blog, tento toda madrugada postar um novo texto. Abraços Madu

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